Parte da região Nordeste da Bahia cultiva a tradição do carro de boi


Sendo originário da Idade da Pedra ou do período Neolítico, o carro de boi surgiu no Brasil com os primeiros engenhos de açúcar, na época da colonização portuguesa. Foi um dos primeiros instrumentos de trabalho, além do mais antigo e principal veículo de transporte utilizado no País, principalmente nas áreas rurais, por quase três séculos. As madeiras utilizadas na construção dos carros de boi tinham que ser fortes principalmente as das rodas. As mais usadas eram o pau d`arco, a aroeira, a sucupira, a carnaubeira. O carro de boi pode ser puxado por uma, duas ou mais juntas ou parelhas. Cada junta possui dois bois, que trabalham um ao lado do outro, unidos pela canga. O condutor do carro que comanda os bois é chamado de carreiro. Os bois se acostumam de tal forma com o carreiro que, muitas vezes a um simples chamado dele, se dirigem vagarosamente e ficam parados próximo ao local onde são normalmente encangados. Batizados com nomes pitorescos, como Cara Preta, Presidente, Azulão, Lavareda, Malhado, Pachola, Curió, atendem pelo nome ao chamado do carreiro.




Heliópolis, cidade do Nordeste baiano, divisa com o estado de Sergipe realiza a III festa do carro de boi



Aconteceu domingo (24/01), na cidade de Heliópolis, uma das ou a mais famosa Festa de Carro de Boi do estado da Bahia. O desfile saiu da comunidade de Vaca Brava, passou pela sede do município e seguiu para a Fazenda União. Organizadas por Zé de Miguel, Carleon e Zé Américo do Saco Grande entre outros carreiros, a festa consegue ativar a lembrança dos moradores dessa cidade com referencia aos tempos que era o principal transporte da região.



Mais de noventa carros de bois participaram do desfile com a presença de carreiros dos municípios da região nordeste do estado da Bahia e Sergipe, a exemplo de José Orinel dos Santos, 46 anos e seu pai Pedro Nunes dos Santos, 76, que desde os 12 anos, que é carreiro.



Pai e filho saíram do município de Cícero Dantas na manhã de sábado (23/01) e seguiram durante todo dia, até chegar no domingo pela manhã a Heliópolis. Segundo Pedro Nunes, os carros geralmente são utilizados com seis bois, porém, por ser uma viagem longa, são utilizados apenas quatro.

Tem carro de boi, e tem carreta. Carreta tem roda raiada e é muda, não canta. Carro de boi tem roda inteira, e canta para se ouvir de léguas, seja gaita, pombo ou baixão. É coisa de sertanejo, é uma saudade doída de um tempo aonde se ia devagar, mas havia mais tempo para ver e entender as coisas. Saber de carro de boi, é mexer com magia, é entender a alma da madeira e do ferro, da terra e do fogo, da água e do ar...
O carro de boi foi nosso principal meio de transporte no período colonial, no império e até na era republicana.
A Construção - Visto de frente, de lado, de cima e de baixo, o bicho é veículo simples, de duas rodas. Todo feito de madeira, menos os aros das rodas, a chaveta e o argolão, que são de ferro, leva as cargas na mesa, que remonta no par de rodas e tem um varejão reforçado onde se atam os bois, chamado cabeçalho.
A mesa é feita de duas chedas que saem uma de cada lado, ligadas no cabeçalho e que apóiam o assoalho. As chedas e as arreias que as unem são feitas de cabreúva, madeira que nem se sabe se existe mais. O assoalho é de canelão, ou outra madeira nem muito dura, nem muito mole. Na parte de trás, fica o rebaixo (recavém).
As rodas são de cabreúva, a parte do centro é chamada meião e lateralmente se limita com as duas cambotas. O meião, perto das cambotas, tem sempre dois buracos, o bocão, ou oca, que é para o som criar força e ecoar. O aro da roda é de ferro, e para ser calçado, é forjado na bigorna, a malho, redondo perfeito, então esquentado quase ao vermelho numa fogueira de roda. O ferreiro e os ajudantes o ajeitam em cima da roda, no chão, acertam rápido com golpes de malho para não ficar torcido e, estando paralelos, o esfriam com água. O ferro se contrai de a madeira estalar... Nunca ninguém mais tira. Os cravos de meio palmo eram só pelas dúvidas.

O eixo também é da desaparecida cabreúva, oitavado e com morgueiras do lado de dentro, para o chumaço não escapulir do cocão. São dois de cada lado, e é por donde gira o eixo. O chumaço deve, de preferência, ser feito de canelão, pra o carro realmente cantar. Madeira dura canta fino, de gaita, canelão canta de pombo ou canta baixo. Capixingui, baraúna e caviúna fazem carro

Cantar até sem carga, mas pedem óleo de copaíba. Canelão canta com óleo de mamona. Esse fica num chifre chamado azeiteira, amarrado com correia num fueiro, e uma vara com trapo na ponta é usada para por óleo no chumaço. Tem vez que o eixo, no atrito com o chumaço, chega a fumacear e levantar labareda. Aí o carreiro pega os cachos de mamona verde e limpa a cantadeira, que é a área do chumaço ajustada no eixo.

A canga tem quatro canzis, dois de cada lado, servindo um par para cada boi. É feita de cabreúva, açoita-cavalo, assapuva ou amendoim, algumas vezes revestida de couro cru. A de cabeçalho é mais pesada, pois segura os bois de coice, os primeiros depois do carro. Os canzis são feitos de peroba, guatambu ou alecrim, têm de ser lisos e bem volteados, para não machucar os bois. Os do cabeçalho têm de ser volteados juntamente com a canga, para o boi poder segurar o carro e parar, quando for preciso. A parte grossa da canga é a barriga, nela encontra-se o tamoeiro de couro cru torcido em várias voltas, que serve para a passagem do cabeçalho, seguro pela chaveta. A orelha é uma haste de madeira atravessada perto da chaveta e também serve para segurar o cabeçalho.

Na traseira do carro, há o argolão de ferro, que serve para engatar os bois para puxar o carro para trás, quando encalha, e para encangar os bois de retranca, quando a descida é muito forte. Nela se amarra a tiradeira, ou cambão, quando se tem que "depenar uma coruja", que é como o povo chama tirar o carro do atoleiro. O cambão é um varejão forte e reto feito de cabreúva, assapuva, guatambu ou peroba. Tem na parte da frente uma chaveta e, na de trás, o rabo, de couro cru, que se engata na chaveta da junta de bois anterior. Quanto mais bois na canga, mais cambões são usados. Também se usa rabo de corrente e gancho de ferro, mas o certo é o couro cru.
A mesa, sem os fueiros, de pouco serve. Fueiro é haste reta e forte, de carrapateiro, guaritá, assapuva ou peroba, que se encaixa nos furos dos lados do assoalho, em geral cinco de cada lado, dois na frente e dois no cadião. Seguram a carga e escoram a esteira, um trançado de taquara de mais ou menos um metro de altura, que fica em pé e tem abertura no fundo do carro. Fecha com atilhos de couro. Para proteger a carga, usa-se couro curtido inteiro de boi. Quatro deles cobrem um carro. Um boi ao outro, formando a junta.
Os tamoeiros também são de couro cru torcido e volteiam as cangas, servindo para travar a frente dos cambões ou tiradeiras pelas chavetas. Temos também a brocha, que serve para amarrar os canzis por baixo do pescoço, para segurar o boi e evitar que a canga solte do cangote. Mede mais ou menos um palmo e é feita de couro cru torcido.
Há a escora, de madeira, que vai um palmo acima da canga e dois palmos e meio abaixo, servindo para apoiar o carro, quando parado, aliviando o peso nos bois de coice, ou para manter o cabeçalho na horizontal, quando desatrelado. Cabeçalho no chão dá azar.
Finalmente, existe a vara de ferrão, de carrapateiro e até de peroba, na frente leva ponteiro de ferro que, antes da ponta, tem furo com duas ou três argolas de ferro, que chacoalham e, assim, o boi já sabe que lá vem cutucão e desamua, ou arranca mais. Carreiro bom não espeta boi de tirar sangue. Só ponteia depois o bicho se mexe só pelo barulho das argolas. Quando tem muitas juntas, costuma-se amarrar na ponta do ferrão uma tira comprida de couro, para alcançar e deixar os bois lá da frente mais espertos.
Tamanho das peças do carro de boi
Mesa: comprimento 3 metros por 1,30 de largura.
Cabeçalho: 4,5 a 5 metros.
Eixo: 1,65m de comprimento e 22 centímetros de espessura

ou 9 polegadas.
Roda: 1,20m de altura.

Fueiros: 1,20 a 1,50m de comprimento.

Nota: Estas medidas variam de acordo com os fabricantes

e o tamanho do carro.
O Canto do Carro de Boi

Quem ouviu, ouviu. Quem não ouviu, não ouve mais. Parece que onde chegam às técnicas e tecnologias de fazer tudo mais depressa, como se o mundo fosse acabar ontem, a poesia acaba desmantelada. Porque o carro de boi não canta por boniteza, somente. Canta por precisão. A vida do carro está na cantiga. Carro de boi, de pau, que não canta, não é carro. É tranqueira com rodas, coisa morta, desservida de encantamento. Porque se há muita carga e o carro canta de gaita, a gente mata os bois. Eles ficam destrambelhados, se estouram no esforço. Mas se o carro canta de baixão, vão lá naquele passo deles, na mesmice de boi deles, em paz com Deus e com o mundo. E se é trabalho corriqueiro, normal, então é bom o carro cantar de pombo, nem para cima, nem para baixo. Pois, estes são os três tons de cantar dos carros: pombo, que é médio, macio. Gaita, fino e alto. E baixão, que é grosso e grave.
Carro cantador não vareia, não descontinua nem destoa nem mesmo nas bacadas mais brutas, ou manobras de vai-e-vem. Léguas longe, quem sabe e conhece percebe a alma do carro chegando muito antes que se possa pôr os olhos nele. Porque o canto do carro é isso: é sua alma, é a alma do carreiro, é o jeito que Deus deu para enfeitar a existência dos bois e dos carreiros pelos caminhos do sertão e da vida.

O Canto do Carro de Boi
O Boi - No geral, os carros atrelam oito bois, mas podem ser dois, quatro, se há muito peso, dez, doze, até uns dezesseis. Mais é desperdício, pouco carro prá muito boi.
Boi de cabeçalho, ou de coice, é boi de força, de servidão garantida, arrasto firme.
É boi de confiança, os primeiros depois do carro. Já os do pé da guia podem ser menores, mas sabidos, e os da chave e contra-chave podem ser meio bravos, pois atrelados no meio, entre os outros, não causam problemas. Idade boa para amansar boi é pelos três anos e meio. Alguns trabalham até 25 anos, mesmo 30. Para quem não sabe que fique sabendo: boi é capão, não serve para tirar cria. Touro é outra história. Chamar um de boi pode trazer confusão. Mas houve esperto que acabou pondo vaca a puxar carro... Um trem desse ninguém leva a sério.
Nome de boi é sentimento. É presente para o bicho no dia que nasce. A gente olha, lá dentro acontece à inspiração e vem o nome: Fumaça, Melindroso, Coração, Dourado, Maneiro, Faceiro, Formoso, Espadilha, Sete de Ouro. Estrela, Malhado, Turuna, Namorado, Pitanga, Corumbá, Maravilha, Limoeiro. Montanha, Brioso, Barroso, Moreno, Mulato, Ponteiro, Caruaru, Cravinho, Cruzeiro. Teve até um que tinha olho puxado, virou Sakamoto, lá no Sitio Bom Destino, em Santa Rosa do Viterbo. Nome de boi é isso, é poesia, tá ali na qualidade, na cor, no jeitão, na prosopopéia do bicho.

Por: Valdemí de Assis com texto e pesquisas / fotos: Raimundo Mascarenhas

Fonte: Calila Noticias

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